BOOGIE WACT - Voluntariado e Bodyboard em São Tomé - artigo de Francisca Veiga
Poderia reduzir toda estaexperiência a uma só palavra. Palavra tão portuguesa, mas do jeito santomense:sodade. No entanto, espero conseguir transmitir-vos um pouco mais do queisso. Isto que se torna um grande desafio - expressar por palavras o que sentino curto espaço de tempo mais rico de toda a minha vida.
Tudo começou em Portugal. Inscrevi-me numaONG, a WACT (We Are Changing Together), que se diferencia pelo facto de daroportunidade aos seus formandos de criar o seu próprio projecto. Foi assim quesurgiu o Boogie WACT, após um levantamento de problemas santomenses, aliadoàquilo que mais gosto de fazer, Bodyboard.
O Boogie WACT surge de forma a trabalharvalores educativos com crianças de forma divertida através do desporto, nestecaso, do Bodyboard. Este é um ótimo meio para desenvolver valores ecompetências como responsabilidade, respeito, resiliência, desafio e cooperação.
Ainda em Portugal foi feita uma campanha derecolha de material, conseguindo angariar todo o material da modalidadenecessário à prática do projecto. Desde já aproveito para agradecer a todas aspessoas e marcas que contribuíram com pranchas, pés de pato, shop’s e palavrasque me fizeram ter confiança e acreditar realmente nisto.
Mas tudo começou verdadeiramente em São Tomé. Logono primeiro dia fui confrontada com aquilo que a raposa do principezinho diz “Oessencial é invisível aos olhos”. É em São Tomé que, para mim, esta frase ganhaum verdadeiro sentido.
Os primeiros dias passados em São Tomé, devisita às roças perto do local onde morámos, Guadalupe, são um misto de emoçõese sentimentos meio inexplicável. Olhei à volta e via uma pobreza com a qualnunca me tinha deparado. Vejo porcos e galinhas a deambularem pelas ruas nomeio das pessoas. Vejo crianças curiosas a correrem descalças e rotas, em totalliberdade pelas ruas imundas e cheias de pó, a tocarem-me como se fosse umaextraterrestre mas, no minuto seguinte, a lutarem para me darem a mão. É ummisto de cheiro a peixe podre com aquele cheiro típico santomense, com lixo.
E o modo de vida daquelas pessoas…tudo isto mefez entrar em choque comigo mesma, porque ali não havia aquelas coisas que omundo diz que são importantes. Mas ao mesmo tempo, via sorrisos brancosradiantes em rostos contrastantes de ébano, e força e profundidade de carácternos olhos das pessoas. Ouvia vozesfelizes, risos cantantes, e assim percebi que ali havia tudo o que erarealmente importante - paz e uma alegria inquestionáveis.
E eu, eu também o senti! E neste momento, nãome consigo imaginar mais feliz do que fui em São Tomé. Passado o choque, foiinstantâneo o amor que senti por aquele lugar e por aquelas pessoas.
Após este choque cultural (e interior, paradizer a verdade), estava na hora de colocar mãos à obra e começar a pensar noprojecto. Deparei-me com um problema. O projeto que tinha desenhado para serimplementado em Santana, fez-me viajar uns km’s mais a sul, para RibeiraAfonso, por me deparar com uma comunidade mais carenciada e que ofereciamelhores condições de segurança para a prática do Bodyboard.
Ainda assim, a sorte estava do meu lado. Noprimeiro dia de visita à praia das Sete Ondas deparo-me com um ambientefascinante: vegetação que abraçava toda a praia, boas ondas, e a sorte deencontrar as pessoas certas que acabaram por me acompanhar sempre. Conheci trêsjovens escuteiros mais ou menos da minha idade, e uma senhora mais velha. Todosmuito responsáveis, e figuras de valor perante as crianças da comunidade, comouma espécie de irmãos e mãe, não só para as crianças, mas também para mim.
Foram eles que me receberam e acolheram, e fizeram-no de forma tãoreconfortante que neste momento o Boogie WACT está lá, mesmo eu estando cá. E omesmo acontece com o meu coração.
O que me assustou mais nesta mudança para uma comunidade mais distante da cidade, era o tempo que iria passar em viagens de hiace. Hiace, que aventura! Uma carrinha de nove lugares, onde o habitual é andarem 15 pessoas (no mínimo), e que me fez começar a perceber um bocadinho daquela língua melodiosa. Oh, quantos pedidos de casamento recebi eu naquele ambiente (romântico?).
Foram eles que me receberam e acolheram, e fizeram-no de forma tãoreconfortante que neste momento o Boogie WACT está lá, mesmo eu estando cá. E omesmo acontece com o meu coração.
O que me assustou mais nesta mudança para uma comunidade mais distante da cidade, era o tempo que iria passar em viagens de hiace. Hiace, que aventura! Uma carrinha de nove lugares, onde o habitual é andarem 15 pessoas (no mínimo), e que me fez começar a perceber um bocadinho daquela língua melodiosa. Oh, quantos pedidos de casamento recebi eu naquele ambiente (romântico?).
Com o sovaco de uma senhora a roçar-me bem perto do nariz, com uma perna minha entre as pernas de outra senhora, com duas crianças a pingarem ranho do nariz ao meu colo e com um alguidar de peixe minado de moscas algures perto de mim. Eu só lhe sentia o cheiro, por ter a visibilidade reduzida pelo excesso de população que ali se encontrava naquele cubículo sobre rodas, Kizomba em volume máximo, e claro, todos aos berros.
Uma condução exímia, não pela positiva, mas os buracos na estrada não ajudavam, fazendo com que 70 km diários fossem feitos aos zigue-zagues e acabassem por parecer intermináveis. Mas ao fim de dois dias tudo isto já me parecia normal, já todos me conheciam como a “brranca” e, sem me aperceber, quase que já agia como eles. Por pouco não comecei a falar crioulo também.
Rebobinando. No dia de apresentação doprojecto a Ribeira Afonso, já com a minha equipa de monitores formada,apareceram-me cerca de 150 crianças à minha frente a gritaram “eu quero correrprrancha, me escolhe”. O que é que eu faço à minha vida?
Não imaginam o desespero que é ter de escolherapenas 50 destes miúdos. Queria que todos ficassem, mas não podia comprometer asegurança de nenhum deles. E assim foi, 50 filhos que tinha ganho naquelemomento, à minha frente, ansiosos por aprender o que eu tinha para lhes dar,mas ao mesmo tempo felizes por saberem que eu também queria aprender algo comeles.
O primeiro dia passado na praia com ascrianças foi dedicado a explicações do projecto, regras e responsabilidades. Achavaque seria um desafio, por ir já de sobreaviso de Portugal: “Olha que eles nãocumprem horários”, “Olha que eles não aparecem todos os dias”. Pois é, nestemomento eu assemelho-me a um pavão, porque nunca tive de combater essesproblemas, uma vez que os miúdos estavam tão excitados com o Bodyboard quechegavam às aulas antes de mim, e raramente falhavam.
Depois foi a vez dosmiúdos me ensinarem alguma coisa, como por exemplo, trepar a um coqueiro.Diga-se de passagem, tentativas falhadas, mas risota na certa. Bolas, souum falhanço!
Depois foi a vez dosmiúdos me ensinarem alguma coisa, como por exemplo, trepar a um coqueiro.Diga-se de passagem, tentativas falhadas, mas risota na certa. Bolas, souum falhanço!
Parece que tenho este momento gravado namemória. Não a tentativa de subir a um coqueiro, que é para esquecer, mas o deestarmos todos sentados a comer cocos, caroço e cana-de-açucar, e de todos mechamarem para ver as suas habilidades “Frrancisca, Frrancisca, vê”. De todosrirmos muito, rirmos da parte mais intima do nosso ser, rirmos com a alma, e deeu pensar: já não vejo sujidade, já não vejo doenças, vejo apenas criançasperdidas de amor e eu faminta por partilhar isto com elas. Era esta aminha família nas próximas semanas.
A primeira aula que dei foi extasiante - colocaraqueles miúdos em cima de uma prancha, a cumprir objetivos e responsabilidades,a refletirem sobre as suas aprendizagens, e a conseguirem fazê-lo. Isso fez demim a pessoa mais feliz do mundo. Comecei a pensar “isto é real, eu estou aquie estou a conseguir. E ver o sorriso deles quando deslizavam uma onda, fazia-mesorrir ainda mais.
Passado uma semana, já todos cortavam a onda.Passado duas semanas alguns já queriam começar a fazer “girro” ou, melhordizendo, 360. Com o passar do tempo, notei uma melhoria acentuada no discursoreflexivo deles, no feedback que davam aos colegas e na cooperação inter-grupo.E é aqui que me cai a ficha, “isto realmente está a resultar, os miúdos estão acrescer graças ao Bodyboard”. E também sentia profundamente que estava acrescer graças a eles.
Após a aula de cada dia não conseguia voltar logopara casa. Todos me queriam mostrar algo, todos me queriam ensinar algo. Eforam assim passadas as minhas tardes depois das aulas. A jogar ao jogo dalata, a (tentar) pescar polvo, a jogar à bola com uma bola de pano e sim, tãodescalça quanto eles. Também foram passadas a treinar a subidas aos coqueiros,a fazer acrobacias na praia, a ajudá-los a buscar água para as suas famílias, alavar as suas roupas e a passear para as roças mais próximas de Ribeira Afonso.
Os últimos dois dias foram dedicados a umcampeonato Boogie WACT. Mais uma experiência para a qual não encontro palavraspara descrever. O que senti quando os vi competir? Primeiro um orgulhoimenso por os ver a cortar ondas, muitos deles a tentar e alguns até aconseguir fazer 360 (versão santola). Mas quando alguém o fazia,inevitavelmente eu fazia uma festa como se tivesse ganho a lotaria.
Senti também que eles sentiam exatamente omesmo que eu sentia quando era eu a competir. Cada um ia para o seu cantoaquecer e concentrar-se, com nervos à flor da pele. E quando saíam e sabiam quetinham perdido o heat, os olhos deles brilhavam de lágrimas, e encostavam-se aum canto a refletir sobre o que tinha corrido mal. Até aqui, objectivocumprido. Mais uma aprendizagem - lidar com a derrota. Mas ainda era difícilpara eles verem o lado positivo disto.
Algo de que eu nunca me vou esquecer, paraalém de tudo isto, é do caminho para a praia. 25 crianças, 4 monitores e eu,mais uns curiosos que vinham sempre ver as aulas. Cada aluno com a sua pranchana cabeça, cantávamos e dançávamos o caminho todo, com aquele sorrisocontrastante deles e de forma a combater a ânsia de chegar à praia eatirarem-se à água para surfar.
“1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 nós somos Biguie Uequi,7, 6, 5, 4, 3, 2, 1 Biguie Uequi há só um. A Frrancisca apareceu,Ribeirr’Afonso agrradeceu. Eu só quero aprrender, o Biguie Uequi faz crrescer,o Biguie Uequi faz crrescer”.
Saio de São Tomé com a certeza de queentreguei o meu coração a um lugar onde nunca tinha estado. Todas as palavrasse tornam pequenas para transmitir uma fração que seja desta experiência. Oh,o que eu aprendi com estes corações radiantes. Hoje, inspiro fundo paraque o ar me relembre aquilo que só consigo descrever como “São Tomé”.
Em Julho de 2013, quando fui para São Tomé,achava que ia mudar aquelas crianças. E acho que mudei! Mas regresso com acerteza de que elas me mudaram a mim. Trago comigo também a convicçãoinabalável de que as pessoas são o que mais importa. Estou determinada de quenão sou eu que vou mudar o mundo. Mas contento-me com esta pequena mudança. Pequenasmudanças que se vão acumulando.
Eu estou aqui, mas o meu coração estálá. Estamos juntos!
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